Dogma e dialética são dois pólos opostos, como manifestação de conhecimento. Quando o primeiro procura substituir a segunda torna-se forçosa a queda em algo nefasto que poderia ser qualificado de unilateralidade repressora. Pois a pragmática rejeita o dogma; este só encontra a sua validade dinâmica na expressão criativa de uma gratuidade essencial.
Pode-se focalizar a questão sob a perspectiva do uso da linguagem verbal. Para tanto vamos recorrer a dois pólos de atividade linguística, fundamentalmente heterogêneos entre si em matéria de efeitos e objetivos. Poesia e discussão. Com a angulação do comportamento do homo ludens.
Discussão é dialética. A técnica do jogo é simples: uma pessoa tenta convencer e provar a outra que o seu entendimento sobre determinado assunto está correto e que, por conseguinte, a da interlocutora não está. Predomina o relativismo essencial do lançamento das premissas (que envidam conduzir a uma conclusão lógica), ou seja, cada uma delas tem de ser firmada em fatos e eventos notórios e o encadeamento racional é obrigatório para todas. Inexistente a validade funcional para a afirmação gratuita. Se, por exemplo, no meio da discussão, A diz para B que este último se está portanto como “um pavão latejante”, e metáfora, brilhante ou de mau-gosto em nada contribuirá para o resultado. Será, no máximo, um aprimoramento voluptuário ornando a argumentação. Mesmo porque, se o debate descambasse para a veracidade da assertiva seria muito difícil, ao emitente da imagem, provar que o seu contestador é um pavão, ainda mais latejante.
Já, na poesia, ocorre o contrário: saímos do pólo do relativismo total para aquele do absolutismo do dizer. É aquela ideia de Heidegger de fundar - o poeta inaugura. E como inaugura, cria dogmas, dirige-se, em primeira instância, à sensibilidade. Assim será lícito ao poeta X iniciar o primeiro verso do poema, exclamando: “sou um pavão latejante”. Numa segunda etapa, o intelecto pode filtrar aquilo que quis dizer o poeta (dentro do mecanismo lógico da linguagem discursiva) por detrás de tal metáfora. Mas, aí então existirá aquela unilateralidade repressora no dogma poético, porque a sua verdade é apenas a da coisa em si e não irá procurar afivelar-se a outras coisas. Escapando do mundo utilitário dos objetos, devido à sua gratuidade essencial, irá só atuar sobre este na segunda instância, quando já incidiu a filtragem intelectual que permite o encadeamento lógico do fato novo (o dizer inaugural) e os antigos já incorporados aos hábitos da língua usual.
Na discussão é o jogo intelectual que aflora logo na instância inicial. Não há a arma da metáfora, o método referencial, enunciativo, navega no léxico. Quanto maior a racionalidade do relacionamento de coisas - de parte a parte - melhor “nascerá a luz”, para usar o refrão surrado.
O primado do dogma no controle do universo estrito dos fatos conduz à entropia do humanismo, é conferir à fantasia do poeta um efeito imediato. No terreno mais subjetivo da autoprojeção individual, leva à loucura. No campo mais objetivo, da política, por exemplo, ou autoprojeção coletiva, leva à ditadura. Por isso, em todos os regimes democráticos a lei controla os donos da verdade e não estes a ela. Já se sabe: a lucidez reflete um estado permanente de dúvidas. É o estar antidogmático. A certeza eterna põe o eu no centro do mundo: é poético, mas, na prática, antidialética, leva às trevas de todos, em torno da estrela absoluta do nada.
Correio da Manhã
10/09/1969