O muro. Não o de Sartre (que, aliás, para os jovens engagés, já está superado por Marcuse - o bestseller menos lido da época). O muro de Berlim; e as artimanhas do turismo (que é uma poderosíssima indústria e sugadouro de divisas da Europa, enquanto, no Brasil, ainda permanece como projeto de parto nos gabinetes da … EMBRATUR).
O muro, que dividiu uma cidade e foi erguido sob o pêso do absurdo e das contradições (não as do capitalismo, mas aquelas do comunismo), proporcionou lances trágicos e fugas sensacionais. Depois, com o escorrer do tempo, a sua tensão arrefeceu-se, na hora em que a China de Mao veio a perfazer uma triangulação ideológica no cenário internacional. Pelas estrias da calmaria, introduziu-se, indefectível, o turismo ocidental (e – por que não? - também o oriental, embora menos barroco, inventivo, arrojado). Afinal, a atuação de Tung (campeão de poesia é natação) está quase levando as coisas para um shake-hands definitivo sobre o cimento ou por entre os arames farpados (quem sabe? - um amistoso de voleibol in loco, tendo, a esfera, num pólo, a foice &: martelo; noutro, a cartola de Tio Sam).
Mas isso, por enquanto, é palpite banhado em sátira. Basta a realidade. Do lado ocidental, a indústria sempre florescente encarregou-se de erguer mirantes e escadinhas de madeira a fim de que as objetivas das máquinas fotográficas dos visitantes entrem em choque com as alças e massas de mira das metralhadoras dos vigilantes orientais, enfurnados em suas casinholas (ou redomas burocráticas). Pois, a bem da verdade, pouquíssima gente, agora, foge ou tenta pular o muro para o lado de cá - isto devido ao conformismo, à adaptação, ao melhor aprimoramento do mecanismo de vigilância. Diz, por seu turno, um cicerone (expert no tema) que os escassos casos de abandono de Berlim Ocidental por Berlim Oriental se devem a dois fatores: 1) os fracassados na vida, que em último caso, tentam nova chance do "lado de lá”, onde o Estado organiza tudo e lhes escolherá uma profissão; 2) uma variante da clássica e eterna fuga dos credores (aqui, uma pausa humorística para imaginar um muro dividindo, por exemplo, o Estado da Guanabara, com notificações do Imposto de Renda, cotas da CEDAG ou "papagaios" cruzando-se sobre ele, em vôo célere).
Se, de costas para a imponente Porta de Bradenburgo, Berlim Ocidental, mormente através do seu comércio fabuloso, se consiste numa vitrina atrativa do universo da livre iniciativa, a passagem para o lado oriental permanence aberta aos turistas que queiram visitá-la. Basta; ao entrar munido de passaporte, enfrentar o formalismo burocrático, cuja maior sutileza, já na hora da saída e de consequente revista dos veículos por intermédio dos guardas, reside num espelho sôbre rodas, conduzido por um homem como se fosse carreta, e que se infiltra por entre as rodas do carro à procura de um remotíssimo fugitivo que, porventura, se tenha agarrado à parte inferior do carro (posição que não seria das mais cômodas e refrescantes) .
O tempo acende e apaga - é o exercício do óbvio constatar que tudo muda. E que talvez o próprio turismo (que tanto acaba por desfigurar a "côr local" de tantos lugares) seja, insensivelmente, o instrumento do acaso destinado a acabar com o absurdo.

Correio da Manhã
02/08/1969