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Em leilão, um pouco da memória nacional

(José Lino Grunewald começou a colaborar no "Correio da Manhã" em 1958, escrevendo artigos diários sobre cinema, literatura e música popular. Em 62, passou a editorialista do jornal e a editor do caderno cultural. Em 67, era também autor de artigos políticos e de uma coluna de assuntos policiais. Dois anos depois, quando houve o arrendamento do jornal, ocupou o cargo de sub-editor. Mas os salários começaram a ser congelados e ele logo abandonou essa função. A partir daí, passou a escrever apenas artigos sobre cinema e música, publicados três vezes por mês. Mas ficou no jornal até seu fechamento.)

Dia 16 de junho de 1975. O velho prédio da avenida Gomes Freire, 471, vai ser reaberto - melancolicamente reaberto. Não é mais um redator-chefe quem vai dar início aos trabalhos, mas sim um leiloeiro. Os interessados estão prontos a arrematar a carniça, aquilo, entre máquinas, livros e objetos, que resta da história viva de um país, de uma cidade, da própria imprensa. Da imprensa limpa - não a limpeza neutra de quem lava as mãos, mas a de quem aposta na liberdade. O Correio da Manhã, com todos os erros e acertos, sempre primou em não esquecer que a liberdade - de informar e de opinar - é a essência, a ontologia do jornalismo. Sem ela, não estaríamos diante da sombra de um grande jornal, mas apenas de uma agência.
Abertos os grandes portões, no saguão de entrada emerge um espetáculo sinistramente pitoresco: dezenas de relógios redondos dependurados, parados, formando o lote n° tal, que vai ser leiloado. Relógios que ocupavam várias dependências e salas do prédio estão ali, mudos, em ordem unida, como a simbolizar que a morte do seu dono foi um hiato no tempo da imprensa livre. Os seus ponteiros negros, inertes no luto, apontam para a impotência de acusar, protestar, ao menos gritar - êxito da coação e covardia muito menos "ocultas" do que aquelas forças do ex-presidente Jânio Quadros.
No interior, em todos os andares, não há luz para acompanhar os passos dos pregoeiros, dos arrematantes, dos representantes da Justiça, dos repórteres e fotógrafos de outros jornais e de antigos funcionários da casa (pessoal das oficinas, redação, administração, gravura etc) que vão relembrar a vibração do passado, num presente em que tudo é penumbra, às vezes rasgada pela claridade cinzenta que vara algumas janelas. Enquanto os leiloeiros se agitam e os arrematantes se manifestam, percorrer os corredores e salas sujos e escurecidos do velho Correio corresponde a um
traveling para a memória. Mesas empilhadas, máquinas de escrever emparelhadas, objetos esparsos e heterogêneos. De repente, no alto de uma estante vazia, no 5° andar, vê-se a famosa caixa de sugestões - "queixas e reclamações" - de "O Gerico", uma das seções mais populares do jornal, aquela através da qual prestava-se um serviço ao público: um buraco mal tapado, um cano furado, uma praça abondonada, o lixo não recolhido, a falta de policiamento.
A partir daí, um mundo de rememorações. Era o apogeu do jornal de Edmundo e, depois, Paulo Bittencourt. A redação permanentemente agitada - alegre ou tensa - mas sempre informal. Não havia compartimentos estanques: um editorialista podia estar "fuçando" na mesa de um foca, atrás de assunto para opinar. Um fotógrafo entrava alvoroçado, o colunista de cinema discutindo futebol com o chefe de reportagem, o secretário atirando matérias para o diagramador, enquanto os olhos desenhavam uma panorâmica pela redação, sob o timbre das máquinas de escrever.
O que foi o Correio da Manhã? Ironia. Estava acabando de fazer 74 anos de existência, a 15 de junho, no dia anterior àquela tarde cinzenta e fria do leilão grotesco. Fundou-o Edmundo Bittencourt e instalou-o, inicialmente, na rua Moreira César, que era então o nome eventual da rua do Ouvidor. Naquela época, toda a imprensa era praticamente oficial - inexistia oposição. O próprio presidente Campos Salles reconhecia isso. Edmundo, que havia trabalhado no escritório de Rui Barbosa, criou o jornal a fim de fazer oposição, para combater a política dos governadores, para denunciar a sagração das oligarquias. A começar de então, surgem as inúmeras campanhas e participações famosas do Correio da Manhã. Apoiou Rui na campanha civilista, contra Hermes da Fonseca. Acompanhou com simpatia o episódio histórico dos 18 do forte (e o corneteiro do forte, cabo Reis, acabou funcionário da casa). Apoiou as longas andanças da Colunas Prestes (com Juarez Távora, João Alberto, Cordeiro de Farias, Siqueira Campos) e foi esse jornal que deu a Prestes o Título de "Cavaleiro da Esperança". Fechado durante muitos meses, durante o governo de Arthur Bernardes, endossou, depois, a revolução de 1930. Em 1945, divulgou a famosa entrevista de José Américo, que foi o estopim para o término da ditadura do Estado Novo. Defendeu a posse de Juscelino Kubitschek, defendeu a posse de João Goulart (políticos a quem havia duramente criticado). Mais recentemente, embora apoiando o movimento de 31 de março de 1964, manifestou-se contra todos os atos institucionais - principalmente os de números 1 e 2. No caso do ato n° 5, o protesto não conseguiu sair impresso - a polícia encarregou-se de fechar o jornal. O "petit Trianon" - a sala onde ficavam os editorialistas - foi invadido por beleguins de metralhadora, alguns redatores tiveram de fugir envergando macações de empregados das oficinas, a diretoria - presidente, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, ficou longo tempo encarcerada. E outros diretores também foram presos.
Paredes sujas e frias exalando história, da rua do Ouvidor o jornal mudou-se para o largo da Carioca e, depois, definitivamente, ficou ali na Gomes Freire. O exercício quase que contínuo da oposição não era mera atitude. Denotava o papel sacrificado da imprensa autêntica em país subdesenvolvido, onde a lei, o estado de direito, a qualquer momento, poderiam virar carta fora do baralho frente não só a corrupção, mas a subversão, fosse esta marginal, oficial ou oficiosa, gerada nos gabinetes ou nas linhas e entrelinhas das "ordens do dia". Como todo e qualquer jornal, O Correio da Manhã dos Bittencourt tinha anunciantes, mas os anunciantes nunca tiveram o Correio da Manhã. Era mais fácil, lá, um jornalista ser demitido por causa de um elogio estranhamente encaixado do que por uma crítica emocional, intempestiva. Pairava a famosa e incorruptível "ortografia da casa". Eram os editoriais solenes ou polêmicos, os tópicos (antigamente chamados de "sueltos”) ferozes, maliciosos, divertidos. E, em todos os setores, os colunistas seguiam o mesmo diapasão: independência e destemor.
Por isso mesmo, também foi um jornal marcante no processo cultural. Desde 1902, quando, em suas páginas. José Veríssimo chamava a atenção para a importância de Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Evaristo de Morais nele começou a escrever a primeira coluna na imprensa sobre Direito do Trabalho. Humberto de Campos desenvolvia a sua obra de critica literária. Em 1926, o Correio divulga o manifesto antropofágico, de Oswaldo de Andrade, que, posteriormente, passou a apresentar sua coluna, denominada "Telefonema". Em 1946. Álvaro Lins, repisando Veríssimo, chama a atenção para Guimarães Rosa (em foco: Sagarana). E quantos nomes famosos já não haviam passado pelas suas páginas? Assis Chateaubriand, Coelho Netto, Vicente Piragibe, Azevedo Amaral, e Carlos Drummond de Andrade, anos a fio, redigindo crônicas com as inicais C.D.A.? Sem falar nas colunas tradicionais, Aderson Magalhães, o All Right, M. Paulo Filho, o João Paraguassu.
E O Correio da Manhã quase sempre vivo e inovador em suas seções e colunas especializadas. Desde o suplemento literário, de Alvaro Lins e José Conde, o caderno de variedades do Guima (José Antonio Guimarães). Na seção de teatro, Pascoal Carlos Magno, não só preocupado com as peças em cartaz, mas agindo, criando o teatro do estudante. No cinema, Antonio Moniz Vianna, descortinando um método de informação e formulação até hoje copiado, plagiado, mesmo nas resenhas de TV. Nas artes plásticas, o Correio com seu papel predominante na criação do Museu de Arte Moderna, com Jayme Maurício ilustrando e promovendo. Na música, com Eurico Nogueira França dando sempre a opinião mais abalizada. E vale lembrar que a última grande fase de Nelson Rodrigues - memorialista - começou lá, quando o então redator-chefe, Newton Rodrigues, lhe propôs a idéia, logo aceita. E cabe assinalar - era o estilo do jornal - Nelson acabava de ver o seu último romance - O Casamento - proibido pelo governo Castello Branco.
Não é fácil por outro lado, enumer a quantidade de escritores e intelectuais que povoaram aquela redação, alguns como redatores-chefes, como o legendário Costa Rego, Antonio Callado, Luis Alberto Bahia, Moniz Viana (que escreveu os dois famosos editoriais "Basta" e "Fora", em 1964), Armando Miceli, Franklin de Oliveira. E lá, entre os redatores de alta classe, Otto Maria Carpeaux, Carlos Heitor Cony, Paulo Francis, José César Borba, Hermano Alves. E recordar as campanhas de Carlos Lacerda, as teorizações de Roberto Campos, as exclamações de Augusto Frederico Schmidt, os primeiros vagidos ecológicos de um Floresta de Miranda, sempre contra a buzina.
Um mundo. Acabou. Voltamos ao leilão. A frieza e veemência profissionalizada de leiloeiro e arrematantes nada tem a ver com o passado. Aquele passado que, inclusive, ficou registrado em marchinha de Lamartine Babo, também gravada pelo autor em dupla com Carmem Miranda: "Fui seguindo pro meu caminho/ encontrei um passarinho/ sentadinho no diva/ lendo as últimas notícias/ no Correio da Manhã". E isso também faz logo lembrar a amizade de Paulo Bittencourt com a turma da velha guarda. Uma das últimas vezes em que o vi, lá estava no restaurante do jornal, de ganzá na mão, acompanhando os ritmos e solos de Pixinguinha, Donga, João da Bahiana, Alfredinho e outros.
Da alegria da velha guarda, voltamos à batuta do leiloeiro. E à preocupação: qual será o destino do lote n° 126, onde figura a coleção completa do Correio - de 1901 até a última edição? Alguém responderá por isso? Ninguém? Daquele patrimônio, não só da imprensa mas da cultura brasileira, restava o prédio, escuro, carcomido, abandonado. A pequena trepidação do leilão, os passos fúnebres das pessoas que acompanhavam o leiloeiro, traduziam um eco melancolicamente oco da trepidação de outrora. Foi-se o jornal. Mas era um jornal-memória nacional.

Jornal da Tarde
19/06/1975

 
Wiener ou Cibernética
Correio da Manhã 12/04/1964

OP X POP uma opção duvidosa
Correio da Manhã 02/10/1965

Mitos políticos
Correio da Manhã 31/10/1965

Cristãos & Ocidentais
Correio da Manhã 22/12/1965

Moral & Salvação
Correio da Manhã 13/01/1966

Semântica & Nacionalismo
Correio da Manhã 25/02/1966

Ruínas de Conímbriga
Correio da Manhã 19/10/1966

Coimbra: canção e tradição
Correio da Manhã 09/11/1966

Beatnicks: protesto solitário
Correio da Manhã 10/05/1967

Os filhos que devem nascer
Guanabara em Revista nrº7 01/07/1967

Despir os Tabus
Correio da Manhã 12/01/1968

Ninguém ri por último nas fábulas do povo
Revista do Diner\'s 01/04/1968

Muro e Turismo
Correio da Manhã 02/08/1969

Dogma & dialética
Correio da Manhã 10/09/1969

Forma e fonte
Correio da Manhã 16/09/1969

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