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Da liberdade

São muitos os aspectos pelos quais se pode encarar a questão da liberdade. Ou então, como aqui no Brasil (e em boa parte do mundo), a liberdade ainda em questão. É muito comum entre nós ainda negar certas atitudes ou manifestações essenciais ou confundir direitos com obrigações.
Vamos abordar seis itens onde as deturpações estão presentes, a saber: 1. o voto obrigatório; 2. a Lei de Imprensa; 3. o jogo; 4. a eutanásia; 5. o aborto; 6. o cinto de segurança.
O caso do voto é logo o primeiro onde se confunde direito com obrigação. Em sua essência, em sua ontologia, ele é claramente um direito, ou seja, vota quem quer, são perfeitamente dispensáveis os títulos de eleitor concebidos a fim de gerar uma burocracia inútil. Mas o inciso I do parágrafo 1º do artigo 14 da Constituição "cidadã" dispõe que o alistamento eleitoral e o voto são obrigatórios para os maiores de 18 anos. Por contradição, o título do capítulo IV, onde está inserida essa norma, é dos Direitos Políticos. Falam em direitos e plantam obrigações. Mais um exemplo da colcha de retalhos que é a atual Carta.
Dir-se-ia que a obrigatoriedade é necessária porque, principalmente nos municípios mais atrasados, o voto de cabresto levaria vantagem. Mas não se pode argumentar invocando a exceção e a ignorância. Mesmo porque, nos centros mais adiantados, aquele eleitor dotado de espírito público que vota de livre e espontânea vontade fica igualado àquele outro que cumpre com má vontade uma obrigação, quando preferiria estar, quem sabe?, dormindo, surfando, vento TV ... Aí está o absurdo institucional.
E quanto à impresa? Um país sem imprensa livre não tem imprensa. Temos a mordaça ou um arremedo que finge rabiscar a realidade. Parlamentares de mau humor ou então apavorados porque os jornais só fazem constatar aquilo que até as pedras da rua sabem - o fisiologismo de muitos deputados e senadores - querem uma dura lei de imprensa. Sempre a distorção ou a redundância. Os crimes de injúria, calúnia e difamação já estão capitulados no Código Penal e envolvem os delitos cometidos através dos meios de comunicação. Isso é suficiente, além do direito de resposta já estabelecido em normas anteriores. O quanto basta. O resto é figuração ou a tentativa de estrangular um dos principais focos de desenvolvimento da liberdade - a liberdade de informar e opinar.
Chegamos, então, a um dos tópicos mais ridículos do tema: a proibição dos cassinos. Em primeira instância, comprova-se que o Brasil exporta moral para o resto do mundo cristão e ocidental. Numa segunda, pior ainda: constata-se que, aqui, o pobre pode jogar e o rico não pode.
Sem falar no jogo do bicho que já é cultura nacional e deveria estar legalizado, em loterias, quina, mega e super-sena, o que se vê são pessoas de condição humilde fazendo fila nos correios a fim de adquirir tele-senas ou papa-tudos ou, pior ainda, na porta das lojas gastando as unhas com a raspadinha. Logo a raspadinha que pode ser uma farsa oficializada, pois ninguém garante que a produção de cartões e emissão de prêmios seja proporcional ao volume de apostas. Enquanto isso, o cassino exige um mínimo de apresentação, a aquisição de um cacife, consumação mínima etc.
A proibição dos cassinos, em 1946, foi o maior crime perpetrado no país contra o emprego e a assistência social. Em nível municipal, traduziu uma catástrofe para as localidades turísticas. Em Petrópolis, por exemplo, não fosse essa proibição, há muito já estariam dragados os rios Quitandinha, Palatinato e Piabanha. Cassino é também cultura, principalmente em nível popular. Aqui, no Rio, enquanto o jogo era livre, chegavam os melhores conjuntos e intérpretes do mundo. Enfim, o ludismo perfaz um desdobramento da natureza humana - está presente em cada decisão que se toma. Escritores como Huizinga (Homo ludens) ou Rappoport sabiam disso.
Vedar a eutanásia é outra atitude que chega às raias do absurdo. Se o suicídio constitui direito inalienável do ser humano, muito maior razão existe quando o indivíduo está sofrendo, está desenganado e pede para cessar tudo. E também é lícita a intervenção de terceiro quando o estado é comatoso. Isso tudo da maior simplicidade - traduz humanismo. O resto representa mero farisaísmo, ou filigranas médicas, jurídicas ou religiosas. Afinal, viver é também apenas um direito e, não, uma obrigação.
O mesmo vale para o aborto. Sua proibição é um escândalo ético especialmente quando a gravidez resulta de relação não desejada, de um estupro, por exemplo. Quem tem direitos é a mulher grávida - apenas ela. Quanto ao feto, é tão somente um projeto de ser humano, ainda não existe entitativamente. Com a emasculação da liberdade, surgem essas clínicas clandestinas quando o tratamento se torna muitas vezes precário, as intervenções cirúrgicas comportam maior risco e a sensação de marginalidade possui teor psicológico altamente negativo, para as pacientes.
Tudo isso como resultado do moralismo vigente que, em suma, é uma doença como qualquer outra.
Chegamos finalmente ao prosaico cinto de segurança. Embora adotado internacionalmente, mais do que nunca está em foco a substituição do direito pela artificiosa obrigação. Se o motorista anda, por exemplo, a 140km, fura sinais, sobe na calçada, buzina furiosamente, ele pode fazer isso com cinto ou sem cinto. Ou seja: o cinto não influi na performance do veículo e, assim sendo, não ferindo direito de terceiro, o seu uso consiste em assunto de rigorosa discrição pessoal. A única coisa obrigatória é que o veículo esteja equipado com o cinto. E, por falar nisso, como ficam os coletivos? Até hoje nenhuma resposta.
Existem duas espécies de liberdade com relação ao homem, animal simbólico: a vivencial e a essencial. A primeira é aquela mais simples, de ir e vir, fazer o que a lei lhe permite etc. A segunda, mais profunda, diz respeito ao ser, o ente em si. É o homem livre em relação a si mesmo, despido ao máximo de interesses imediatos e de preconceitos. Este homem pode continuar livre dentro de um cela. E é esta última forma de liberdade que, quando adquirida, por pensamento ou intuição, condiciona a primeira. E, então, haverá o discernir para a conduta humana. Mas, infelizmente, nem sempre líderes e dirigentes aí se enquadram.

O Globo
19/07/1996

 
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