Segundo Karl Marx, a religião era o ópio do povo. Hoje em dia, de acordo com alguns exegetas dos fatos políticos e sociais, o marxismo virou ópio de boa parte da Igreja Católica. Isso tudo mostra não serem novidade os debates em torno da liberdade acadêmica, envolvendo a Pontifícia Universidade Católica, no Rio de Janeiro. Marx, até certo ponto, estava certo. A alienação constitui um fenômeno desintegrante. A máquina colocou concretamente as contradições antagônicas ou não-antagônicas do cristianismo. A expressão, aliás, pertence a Mao Tsé-tung - o mesmo e finado Mao tão enamorado por setores apaixonados da Igreja.
Nélson Rodrigues, há alguns anos, em suas confissões - o mesmo e moralista Nélson Rodrigues tão execrado por aqueles que se julgam ou se proclamam de “esquerda” - inventou uma história trágica e hilariante: O sujeito era católico praticamente e estava para morrer. Soluçou e pediu para a família a presença de um padre a fim de receber a clássica extrema-unção. Pedido feito e atendido. Mas, ó decepção. No quarto do pré-defunto entra um sujeito de bermudas, camisa esporte colorida com coqueiros e imagens do gênero, sandálias havaianas, sacudindo o pasquim. Era o padre. O moribundo, refeito do susto, gritou para o intruso: “Ponha-se pra fora!” - e caiu fulminado.
A fábula serve para denunciar as contradições, ou seja, a ausência daquilo que é declinado como “solenitas, solenitatis”. Se o ritual acabou, se a missa, com vistas a aumentar o público, em lugar de ser rezada em latim, tem o fundo de guitarra elétrica, se o padre não mais veste batina, a alienação detectada por Marx perde o aparato e, em decorrência, todo o encanto. E lá se foram a liturgia e a caridade.
Só falta o papa aparecer na sacado de São Marcos, envergando calção de banho, acompanhado das evoluções do sr. Ney Matogrosso. Está aí a evidência da contradição. Se o sumo pontífice não faz e, por enquanto, não pode fazer isso, por que não seguem a regra do exemplo que vem de cima?
A atuação social da Igreja poderia ser o corolário do comunismo pregado por Cristo. E até uma réplica entre as contradições do que permanece na Bíblia e o estipulado nos dez mandamentos. Na Bíblia, temos o episódio do príncipe que, não tendo forças para dividir seus bens entre os pobres, motivou a famosa frase de que era mais fácil um camelo atravessar o orifício de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. No decálogo, ocorre o contrário, a propriedade e até a mulher do próximo têm de ficar preservadas.
De qualquer forma, vale repisar: a participação da Igreja nas questões sociais é do maior interesse, da maior importância, pela força de alienação que ela é capaz de mobilizar. Aquela mesma alienação tão decantada pelos marxistas de direita e de esquerda. Mas só não conseguiram ainda fisgar Lula, o metalúrgico.
Merleau-Ponty, no antológico prefácio de Signes, procurou demonstrar que o marxismo se trata de uma "verdade segunda' - quer dizer, Marx jaz gloriosamente nas estantes de livros, ao lado de um Platão, de um Santo Agostinho, de um Hegel. Porém, já não explica a realidade, os fenômenos do mundo, o rio de Heráclito que nunca é sempre o mesmo. A sua adoção pelos prelados., mesmo que inconfessada, reflete o desespero da fuga sob as roupagens de engajamento. O mundo da filosofia se consiste num arcabouço para apoiar as ideias, mas essas últimas permanecem sempre humedecidas pela regeneração criada pelos acontecimentos.
Quando vemos o universo dogmático (leia-se religião) namorar o universo dialético (leia-se dúvidas), desconfiamos que algo de novo ocorre. E nem precisa de ser a invocação hamletiana sobre o Reino da Dinamarca. Se constatamos o burocratismo feroz da maioria dos regimes comunistas, constatamos também a religiosidade falsa da ideia de “progresso”. O homem fica reduzido a pó, por haver perdido aquilo que resume a sua essência e o distingue como um animal racional ou parapsicológico ou que seja em matéria de pessoa. Perde a liberdade. E a perda da liberdade constitui o verdadeiro “pecado original”.
No mundo da religião perde-se a liberdade em virtude do ópio de que tanto falava Karl Marx. Marx, aliás, diga-se de passagem, não era tão dogmático como se quer fazer induzir. Produzia também a sua fenomenologia. No mundo do marxismo, ou do burocracismo fantasiado de comunista, perde-se ela em favor do mito do Estado. Cassirer, entre outros, entendeu bem isso, no livro do mesmo nome. Ele viu o fantasma de Hitler, como poderia ter visto o de Stálin. De fantasma em fantasma, foram muitos os ferimentos que fizeram a história da humanidade. A alienação, responsável por todos eles, representa um problema de forma e, nunca, de conteúdos, que são meros artifícios conceituais. No céu ou no pseudocomunismo ou regimes similares, como no Brasil já também fartamente experimentamos, estão sempre presentes as chamadas boas intenções do inferno. As pessoas deveriam, talvez, se neutralizar, duvidar de si, para tentar agir sobre outrem. Governar é isto: autocrítica permanente.
O Estado de São Paulo
25/04/1979