O sr. Juscelino Kubitschek, pelo menos, fez dois grandes males ao Pais: Brasília e a indústria automobilística. Brasília - essa espécie de Atenas envidraçada - não só foi altamente inflacionária no seu fazer. Até hoje continua a gerar os gastos supérfluos, pois o horror quase geral de conviver com uma cidade pré-fabricada, sem esquinas, sem botecos, aciona os aviões de carreira- pra-lá, pra-cá.
A seguir, vem, com ela, o grande desbunde burocrático. As decisões são geralmente retardadas, dentro daquele modelo de desculpa como "o homem está em Brasília". Enfim, se a Capital ainda fosse o saqueado Rio de Janeiro, muito possivelmente a história do Brasil, de 1964 para cá, teria sido diferente. Seria bem diferente ver a tomada do Congresso, aqui na Praça 15, durante o governo Castello Branco.
A indústria automobilística gerou o horror do comportamento. E liberou mais um canal inflacionário por causa disso. Existem famílias onde só falta o cachorro tirar carteira de motorista. No Rio de Janeiro, após a medida altamente criativa de permitir os carros estacionarem em cima das calçadas, sumiu praticamente o carrinho do bebê. As pessoas se apinham na caminhada, em fila indiana, esgueiram-se entre os fuscas e os opalas. Não que se diga que a indústria de carros de passeio deveria nunca ter existido, mas o planejamento ecológico se tratava de uma imposição. O Brasil descobriu o metrô com um século de atraso. O resultado está ai: estouro de verbas, de fios, de canos, instalações de luz, gás, água, telefone, etc. Por detrás de tudo, o retrato sorridente de JK.
Mas, ele mesmo, JK, foi o grande presidente desse período delineado a partir da Revolução de 1930. Representa o espírito da maioria da população brasileira. Ou seja, alegria, disposição para a diversão permanente (algo diferente do que Leon Trotski entendia como "revolução permanente") e a neurose do burocracismo. Este entra, na hipótese, como um antípoda, uma espécie de antibiótico do anarquismo.
Não é fácil compreender para quem está de fora. O conhecido escritor alemão Hans Magnus Erszemberge esteve aqui por volta de 1965 e, entre sorridente e espantado, indagava: que país maravilhoso é este onde eu entro no ônibus, está escrito com letras garrafais - "proibido fumar" - e o próprio motorista está fumando? Que pais é este onde as adolescentes da classe média se vestem no ritmo da revista Elle? Em suma, que beleza de lugar onde as pessoas de tendências políticas as mais contraditórias possíveis denotam uma amizade íntima, onde ser Adernar ou Jânio, Lacerda ou Negrão, não implica a menor jaça no fluxo da camaradagem? E o Brasil. Foi JK. Na Alemanha, talvez fosse rigorosamente inviável.
Esse espírito do brasileiro é que parece não ser entendido por figuras respeitáveis, como os economistas e técnicos do porte dos srs. Roberto Campos, Eugênio Gudin, Octávio Gouvêa de Bulhões, Mário Henrique Simonsen, e etc. A Fundação Getúlio Vargas é uma coisa. o País é outra. Quando se diz ao alemão ou ao japonês "vamos apertar o cinto", eles correspondem. O mesmo comando, desfechado sobre as nossas populações urbanas, provoca a revolta. De nada adianta uma política de restrições aos gastos, de comportamento antidionisíaco, de contenção nas compras, de austera sobriedade, se o povo - a classe média em especial - não adere. Então, a produtividade com relação ao planejamento, na base do monetarismo, da redução apenas gradual, que seja, da inflação, torna-se praticamente inócua. E governar de costas para o povo. JK ri.
O sr. Roberto Campos, no final do governo Castello Branco, teve uma grande idéia: liquidou com as alíquotas de 100% sobre os chamados produtos supérfluos importados, principalmente bebidas, perfumes, comestíveis enlatados, etc. O sr. Roberto Campos é uma personalidade racional: sabe que, muito pior que o chamado "consumo supérfluo", é o "investimento supérfluo". De que adianta o Brasil fabricar uísques ou licores, se, em primeiro lugar, são de baixa qualidade e afugentarão o consumidor, se irão desviar dinheiro que poderia ser aplicado em coisas de maior alcance social, se, enfim, os donos do circuito do contrabando vão ter um espasmo de vanglória? Ainda mais levando-se em conta que o contrabando é tão incontrolável pelas autoridades como o crime que escorre pelas ruas e residências das cidades. Se estamos tentando instalar para valer o capitalismo no Pais, a lei é aquela eterna: da oferta e da procura. O resto são divagações. JK sorri.
O sr. Juscelino Kubitschek deu exatamente à maioria dos brasileiros um sentido de identificação entre governo e público. Preferiu o finado sr. José Maria Alkmim a um tecnocrata - os tecnocratas relegados ao rol das "assessorias". Fez todas as loucuras possíveis e tudo - menos Brasília e a indústria automobilística - findou dando certo. Engrandeceu a Nação dentro daquilo que traduz o seu espírito. E saiu da Presidência com um comportamento que pode ser caracterizado como de alta ética - não tentou o golpe ou um continuísmo ensebado nos gabinetes ou nos quartéis. Passou a faixa para o sr. Jânio Quadros e se preparou para voltar - pela voz das urnas - no fim do período deste último. O que iria inventar, o que iria fazer de novo, não sabemos - porém, certamente haveria outras realizações. No Governo Castello, foi covardemente cassado.
Bofetada na Nação, mas o sr. Mário Andreazza, a jato, pegou seu bastão. JK ri.
O Estado de São Paulo
28/02/1979