A chamada crise da cultura ocidental é denunciada pelo passado, que condena o cristianismo. Hoje, ninguém precisa ter o nome de Nietzsche para bailar sobre o óbvio.
Qual é essa crise? O seu efeito principal está registrado por Heidegger, em O Que se Chama Pensar?: “o que faz mais pensar em nosso tempo, que faz pensar, é que nós ainda não pensamos”. Ainda não pensamos. Heidegger envida demonstrar isto, colocando em xeque a ideia de inocuidade, aparente inocuidade, que o ocidental exprime diante da frase de Parmênides: (legada desde o período entre o sexto e o quinto século antes de Cristo) “é necessário dizer e pensar que o que está é”.
Por que não aprendemos a pensar? Por que o antigo dizer, que desvenda, não é mais proferido? Por causa da violentação do Ser operada pelo distorcionismo cristão. Será? Aliás, o comportamento intensamente cristão só vem sendo praticado por loucos, santos ou fanáticos. A normalidade corporal e estética repudia-o.
Essa violentação foi justamente a separação do Ser na dualidade corpo-espírito.
O mundo grego, tão saudado pelos renascentistas, tão intensamente revivido por grandes intelectuais, como Winckelman, desconhecia tal separação. Expliquemos: para o grego, vida e arte eram a mesma coisa. A inocência ou o saber eram abrangentes. Nada de existência, dividida entre “real” e “espiritual”. Os deuses, aliás, estavam entre nós. Nada de pecado.
O culto do pecado, gerado pelo cristianismo, criou um corpus de funções mutiladas, orientado por uma falsa consciência (alma). No século atual, o autoconhecimento nihilista do homem, transformou-a saudavelmente, em má-consciência. O prazer virou pecado (a não ser os prazeres artificiais da religiosidade). Mas, se assim é, a natureza é o Ente do pecado. Trata-se de um desumanismo (antinatureza). Só resta, do humanismo, o lado formal: as traduções que começaram a ser feitas, na Idade Média, dos textos clássicos, para a linguagem vulgar.
A Idade Média, a era das trevas. Depois, a Renascença julgou-se renovação com a futura indução ao racionalismo. Era um erro. O século das luzes, a auréola do enlightment, gerou apenas o falso prevalecimento da ciência e a monstruosa ideia de progresso - esta última já nos proporcionou preciosidades, que podem ser citadas, desde a bomba H até nossa “morada do sol”, ali, ao lado do Túnel Novo. A claridade cegou.
Se o racionalismo julgava terminar com a religião, apenas desembocou noutra, igual às anteriores: o materialismo. Pois, como disso o mesmo Heidegger, na obra acima mencionada, no mundo grego, o mythos, não foi destruído pelos logos; os primeiro pensadores gregos, pré-socráticos, usavam os termos em sentidos idênticos. “O mundo religioso não é destruído pelo lógica, mas sempre e unicamente, pelo fato de que Deus se retira”.
Deus se retira. Essa é a saudável consciência pagã do século atual. O mundo ocidental, depois da Idade Média, criou os museus, dando ênfase, sem querer, à retirada de Deus. Arte longa, vida breve, um longe, o outro, perto - a dicotomia.
Hoje, o impasse cultural - e, não, decadência - empreende um retorno, um redesabrochar. A noção do que é arte e o que não é arte, principia a entrar em crise. As coisas se misturam. Um cartaz pode dizer tanto ao espírito, quanto um quadro artístico, um sapato, quanto uma escultura, uma notícia de jornal, quanto um conto. Para tanto foi necessário descer os infernos da música ou da arte abstrata, a fim de, na volta, podermos, novamente, não apenas olhar, mas perceber a natureza (o que somos). E, em decorrência, não bem imitá-la no ato de fazer, mas nos comportamentos em analogia a mimesis, dos gregos, que não era mera imitação e, sim, ritual. A forma de conhecer - conhe-ser.
Há apenas o fardo. Apagá-lo (a História) da memória. Impelir para trás a ideia de progresso, a fim de que se instaure a iniciação. Só assim, também, pela integração natural, chegará o verdadeiro social.
Correio da Manhã
18/06/1973