Muita gente ainda, nesta era de computadores, examina o fenômeno cinematográfico, o estético em geral, com suas baterias de regras fincadas na surrada dicotomia forma x conteúdo. Verdade que os exagetas de tal corrente envidam coroar o seu parti-pris já aprioristicamente adotado, ou seja, como no velho Oeste, a forma é o bandido e o conteúdo, o mocinho, enfim, o mal e o bem. Os resultados são os mais curiosos.
O especialista, por exemplo, vai ao cinema e assiste a determinado filme. Depois vem a público dizer que descobriu que o diretor (pobre diretor), a partir de uma situação aparentemente sem importância, vamos dizer, de superestrutura, pretendeu retratar as misérias e contradições de um sistema, de uma sociedade. Mas, pobre diretor, em lugar de se restringir às sutilezas conteudísticas, decidiu enfeitar tudo com as acrobacias da forma e, então, se perdeu. Ou melhor, “alienou-se”.
O leitor, dotado de bom senso, poderia parar e perguntar: e onde fica o cinema, quando se exige tanta contenção à criatividade? Se o conteúdo, o recado no bolso do colete, traduz a lei magna, por que o crítico não faz um comício, uma reportagem, quiçá uma denúncia à autoridade competente, conforme o regime, porque ninguém é de ferro? Por quê homens, como Griffith, Eisenstein, Welles, Rosselini, Godard perderam tanto tempo, se o negócio é o conteúdo? Se for mais longe em suas especulações, vai descobrir, então, que o crítico não está, na verdade, interessado propriamente em cinema ou qualquer manifestação criativa e, sim, em algo além, à margem disso.
Trata-se da confusão acadêmica entre conteúdo e intenção, enfeitar esta última com o nome daquele outro. Mais do que nunca, no terreno da criação, o inferno está lotado de boas intenções que não digam respeito ao objeto da mesma criação. Até no terreno psicológico é difícil explicar e apontar as tais “boas intenções” - quem viver de dogmas vai para o reino dos céus. Tome-se, por exemplo, um jogo de pingue-pongue. Ambos os contendores são craques e estavam com boas intenções em relação à funcionalidade da atuação, ou seja, ganhar. Mas um ganha e o outro perde. Será que este tinha piores intenções?
RESPOSTA: não, porque há um “algo mais” além da vontade, a capacidade. Chegamos então ao problema da forma. Para encará-lo é preciso dizer, logo de saída, e sem tremores éticos, que a arte possui afinidades e um processo análogo ao do jogo. Também para aí a comparação. Se a finalidade da arte, vinculada, ou não, a obra em projeto a uma realidade contingente, é a eficácia da expressão, ou a inovação dos meios de expressão em função da melhor eficácia, impossível exigir Pelé pintando e Picasso numa pelada. Muitas vezes o crítico burocrata e pseudomoralista diz ao artista que, por hipótese, não está interessado em 2001, de Kubrick, e, sim, no problema da fome. O artista lhe responderá que está interessado na fome de criação. Cada macaco em seu galho.
CRIAÇÃO - esta a moral da arte ou da programação industrial. Por isso é a chamada forma que condiciona a manifestação do assim chamado conteúdo, por isso disse Maiakovski que “não há arte revolucionária sem forma revolucionária”. Por isso o teórico da gestalt, Max Wertheimer levantou a lebre do isomorfismo: identificação fundo-forma. Caso contrário, qualquer obra musical seria produto de alienação, porque a ontologia da mesma música repousa na não-iconicidade de seus signos. Mas, nem o estalinismo chegou a tanto…
Senão, enfim, para que o pincel, a câmera, o instrumento? A criação estética tem fome de forma, embora não seja a forma da fome um dos seus temas obrigatoriamente prediletos.
Correio da Manhã
13/05/1971