A era da reprodução, da reprodutividade em massa assinalou inúmeras alterações às condicionantes do processo da criação. Quando a aura do objeto único (Walter Benjamin) foi, em muitos casos, substituída pelo princípio da matriz, muitos mitos caíram por terra. O desenho industrial, por exemplo, foi um dos fatores que serviram para extirpar, do que se entende por beleza, o efeito isolado do deleite hedonista em favor da funcionalidade. O belo é o funcional - este conceito passou, inclusive, a fazer parte do dispositivo de gratuidade essencial que caracteriza, em última instância, a obra de arte, o produto estético. Vetor necessário de autodedução da própria estrutura. E tal gratuidade essencial - o ludos, o artístico - esqueceu os preconceitos de séculos e permitiu que viesse ela própria a ser detectada não apenas numa obra de artista, num objeto real, útil. Afinal, por que um sapato não pode ser mais belo do que uma determinada escultura? Por que uma capa de elepê não pode oferecer melhor informação estética do que uma dada tela de pintor? A segunda revolução industrial deu autonomia suficiente à máquina, a fim de atuar como pêndulo de uma época, a oscilar também no papel de foice, liquidando valores e seus sistemas. O artesanal (arte) deixaria, em diversas hipóteses, de ser um fim em si, como resultado de expressão, para ser meio de formulação de uma matriz.
A própria ingerência dos computadores na realização ou avaliação dos produtos tanto estéticos ou de mero consumo mediato, denotou a possibilidade de se trocar, diante de qualquer obra, a aferição através da indução de qualidade, pela avaliação mediante uma quantificação dos elementos, em relação, da estrutura de cada produto. Por exemplo: o filósofo e ensaísta alemão Max Bense já há um bom número de ano que submete ao computador as obras de poetas, romancistas, pensadores, etc. O seu norteamento é a apreensão de uma medida de entropia, fornecida pela máquina. Há, inclusive, o caso ocorrido com o poeta Francis Ponge, que poderia ser pitoresco para os mais incrédulos ou saudosistas, a encerrar porém uma demonstração das novas águas do processo. Um poema de Ponde foi submetido ao IBM, prévia e devidamente programado para assimilar e re-relacionar todos os seus elementos verbais, bem como graduações de frequência, etc. O computador, a partir do original do poeta, devolveu centenas de variantes. O autor (artesão) leu-as todas e chegou, ele mesmo, à conclusão de que mais de duzentas era superiores, mais eficientes em termos de informação estética do que a sua, primeira. Lógico, porque a memória da máquina não é aleatória e poderá prever todas as espécies de relacionamento porventura esquecidas pelo homem.
Experiências como essa mostram que o primado da ideia ainda é do homem (programação), mas que a execução de um projeto pode ser sempre mais eficaz com a intermediação da máquina. Mostra, no entanto, uma outra coisa mais importante: a de que tal intermediação (atuação) da máquina influencia as ideias do homem. Isso está presente em quase todos os lances do processo atual de existência, num meio razoavelmente desenvolvido.
Se as contradições violentas e desumanas forjadas pelo homem, através da máquina - bomba, destruição, neurose, etc. - geraram uma atitude de marginalismo intencional (hippies, p.ex.), a outra é aquela crítica, de persistir e construir, em nome de uma razão que a tudo açambarque. Então, duas vertentes da criação: a contracultura e a luta por uma linguagem nova.
Correio da Manhã
06/05/1971