A crise do humanismo cristão, identificada também com a chamada crise de valores, não pode ser compreendida ou explicada através de generalidades, como vício, corrupção, desigualdade, etc. & etc. Hippies, terroristas, passageiros das drogas estão aí, como efeitos de coisas mais complexas e concretas.
Examinar crises e questões dessa natureza, na base do moralismo, é o mesmo que arremessar-se, no escuro, contra o muro das limitações. Porque o moralismo esquece a relatividade - não relaciona os fatos, pensa em qualidade, em lugar de quantidade. Ou melhor, substitui a dinâmica estatística, da quantidade de eventos, pelo valor dogmático, estático, da nomeação qualitativa que dá a cada um deles, consoante a bateria de conceitos.
Em lugar da observação estatística e dialética (a montagem dos dados), o pingue-pongue moralidade x imoralidade - a primeira estribada em valores qualitativos absolutos, imutáveis, a segunda, na inversão ou negação, absoluta imutável, desses valores. Quando, por exemplo, um escritor, como Oscar Wilde, dizia que não há livros morais ou imorais e, sim, bem ou mal escritos, estava a propugnar pelo distanciamento crítico do amoralismo. Porque o amoralismo é o marco inicial de qualquer especulação ética, dando sempre hegemonia aos meios e, não, aos fins. Os meios são o instrumento (e, daí, a linguagem); mudando-se os meios, mudam-se os fins. Os meios são concretos; os fins, abstrações. O imoralismo diz que os meios justificam os fins; o moralismo diz o contrário, os fins justificam os meios.
Ora, o instrumentos não é uma coisa neutra, desligada daquilo que vai expressar ou sobre o qual vai atuar. Está representado em sua própria obra. Assim sendo, a crise, alteração ou derrocada de um sistema de meios leva também àquela dos fins; ou das fontes de onde emanariam os conjuntos de princípios éticos.
Se o humanismo cristão está em crise, não é porque ele seja incapaz, em si, de nortear princípios éticos. É porque ele, por si só, é incapaz de se nortear com os novos meios, em suma, já não atua sobre a realidade de modo tão intensivo: máquinas, automação, Freud, Einstein, discos voadores, enfim, uma nova linguagem global do processo. Então, o surto atual de violência, do imoralismo (e, isto, é pleonasmo, por a violência é a alma da imoralidade) resulta como típico de um período de transição, de um sistema de meios para outro, onde o pêndulo é a perplexidade do homem. Se, no momento, Deus está mais inacessível e é a hora e vez do diabo, a dialética (ou o processo), pelo retrospecto, manda concluir que voltaremos ao leito normal do rio.
Correio da Manhã
11/09/1970