“O poder corrompe” - é famosa a constatação de Lord Acton. Por isso mesmo, Maquiavel (O Príncipe, que é, na verdade, o primeiro tratado sistemático de técnica política) soube logo separar a arte política da moral, Mas, enquanto existir propriedade - ou, nem precisa tanto, a simples capacidade de posse das coisas - existirá forçosamente o poder. Daí seria o exercício de comando, chefia, administração, mera fonte do "mal"?
A indagação serve para evidenciar o dogma como fonte de impasses. A começar pela idéia de pecado, a distinção entre o "bem'' e o "mal". Por isso, os donos da verdade são uma ameaça constante à vida pública. A frase de Lord Acton tem de ser entendida dentro de uma ampla perspectiva ética, isto é; aquela de que jamais os fins justificam os meios que não sejam rigorosamente baseados na moral, além de outras virtudes. Acontece que o politico (civil ou militar), mesmo assumindo o exercício do poder como se fosse uma espécie de sacerdócio, onde os seus interêsses pessoais nunca são atendidos, tem de levar em conta o imponderável das chamadas fraquezas humanas. Seu objetivo é o de extirpá-las, mas, não podendo fazer isto com tôdas elas, usa do discernimento tático para empregar aquelas menos negastas, a fim de destruir as mais perigosas à coletividade. Aí, dentro de uma concepção absolutista, já estaria "pecando". Seria vítima do contágio com o “mal”.
Então o pecado original é a vontade de possuir? Responder afirmativamente seria convir que a única possibilidade de o homem manter-se puro traduz o retôrno ao estágio natural, simplesmente animal, de ignorância. Mas isto é impossível até, logo de início, em decorrência de fatôres biológicos. A estrutura do ser humano faculta-lhe, ao contrário da maioria maciça dos outros animais, a atividade simbólica. E isto é que define, em essência, a procura da posse: um ato simbólico. A contradição da ideia de sociedade comunista perfeita e também civilizada é que o Estado tem de ser o único proprietário. Mas como o Estado é uma entidade abstrata, os burocratas tornam-se os verdadeiros proprietários e potentados nacionais. Daí, não há saída. Só aquela, relativa, da democracia.
Reconhecendo-se o relativismo, é que, então, deve o estadista exercer a função moderadora de evitar o excesso de concentração da propriedade nas mãos de uma só pessoa (física ou jurídica), pois isto corresponderia, eticamente, à má distribuição do poder. O estadista, idealmente, não deve obter poder para si, isto é, para seu desfrute, e, sim, dispor do poder alheio com vistas ao bem comum. Na sua ação coordenadora será obrigado a usar dos meios mais eficazes. E, então, chega-se a uma conclusão: o exercício do poder estatal corresponde a um poder pessoal de meios e, nunca, de fins, ou seja, ter a si próprio como objetivo. No momento em que impera a auto-isenção, estará, em decorrência, livre o governante da definição de Lord Acton, mesmo que seja obrigado a usar de meios, às vêzes, considerados, em si, pecaminosos (como a mentira diplomática, por exemplo).
Aí está a grande política, aquela onde o eu, como meta, se toma uma abstração no mapa coletivo. A história registra a passagem dos grandes políticos que aprimoraram o rumo do processo, sabendo errar a varejo, para acertar no atacado. Por isso mesmo, em política, a ética está simbolizada nos fins - os meios, como o de todas as artes, são amorais.
Correio da Manhã
10/11/1969