O conceito de cultura, pelas próprias distorções do racionalismo imediatista e pelo ritual da especialização, oscila entre o formal e o geral de um modo que se perde como balizamento do fenômeno humano, independente de fatores, tais quais raça, geografia, instrumentalização, sistemas econômicos, políticos, sociais etc.
Um dos agentes principais da distorção que perturba a visão do verdadeiro processo e deságua na ineficácia do binômio ensino-aprendizado constitui a falsa idéia de progresso, acionada em grande parte pela cronologia da evolução científica, dominando em especial a civilização ocidental.
Lévy-Strauss, desde a época em que escreveu a sua monografia Raça e Cultura, já havia denunciado essa concepção simplista, que, a partir dos períodos sobre os quais mantemos maiores dados a respeito do ser humano, se funda na passagem e dicotomia do período paleolítico (pedra lascada) ao neolítico (pedra polida).
Esse conceito de progresso, em lugar de atender a um critério de "apreensão horizontal do real", de que fala Jean Ladrière em sua Filosofia da Cibernética, ou consoante os diagnósticos, alguns merecidamente polêmicos de McLuhan, em seu descortínio da aldeia global, funda-se meramente numa ênfase de valores decalcados de uma verticalidade sobre o domínio e controle da matéria. Já se viu o que essa verticalidade não esconde, sem evitar a escalada inversa da pirâmide do progresso no sentido das contradições: armamentos nucleares, a fabricação crescente dos instrumentos dedicados a matar o próximo, fome, epidemias, moléstias, intensa desigualdade social. Se, por exemplo, o conceito de progresso, como simples evolução no domínio das propriedades da matéria, fosse lógico e lúcido, refletindo, até por utopia, a consciência de captar racionalmente os efeitos do imprevisível, não teríamos a política de controle das informações verdadeiras a respeito dos discos voadores (ou objetos aéreos não-identificados) praticada pelos órgãos de segurança. Em suma, se tal progresso traduz bem-estar da humanidade, continuamos na estaca zero.
A idéia de cultura cinge-se em teor espontâneo e especulativo, típico do comportamento do homem ("animal simbólico", vide Cassirer), e é a concretização das atividades de conhecimento humano, consoante um relacionamento dicotómico sujeito-objeto, aluando o primeiro sobre o segundo. Inexiste atuação privilegiada, na base do isso é mais importante do que aquilo, mesmo porque, os efeitos dessa ou daquela atuação transformam-se imediatamente em novo objeto de conhecimento. Vincula-se, evidentemente, a cultura ao processo da necessidade e, aí então, só existe uma forma de atuação que pode classificar de acultural ou não-cultural: o extermínio. Ora, se não há coisa mais necessária do que o homem em si, qualquer institucionalização que diga respeito ao seu extermínio (guerra, pena de morte etc.) denuncia esse simples progressismo, material e cientificamente entendido, marcando contra a cultura.
Se a meta é o homem, o tema não pode ser apenas um nome (ou sistema) - humanismo - e, sim a sua apropriação pelos meios concretos. A estaca zero do progressismo já configura, então, um símbolo dos fabricantes de sistemas abstratos, formalistas, girando ali, sobre eles mesmos.
Correio da Manhã
25/03/1971