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Do relato ao registro

Em 1822, o francês Joseph Nicéphore Nièpce, mediante uma folha de papel quimicamente sensibilizada, introduzida numa câmara, registra a imagem da mesa posta para refeição no jardim de sua casa.
Pela mesma época, outro francês, Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851), com a câmera escura e o metal polido, realiza idênticas modalidades de registras da realidade, criando seu assim chamado daguerreótipo.
Era a invenção da fotografia, Mais do que isso - o filme: uma grande revolução, tão importante como aquela que, cerca de quase três séculos antes, em Mainz, havia sido desfechada por Gutenberg, com a descoberta da imprensa. Com essa descoberta, o alfabeto, mais do que nunca - graças à crescente variedade de editar livros e diversas outras espécies de publicações - iria ser a principal fonte de iluminação, Literatura, ciência e filosofia ganham asas, as idéias circulam mais rápido, seja no espaço, seja no pensamento. E as letras, em decorrência da diversidade tipográfica, vão ganhando vida própria. Consequências disso entre outras coisas: Mallarmé, a propaganda e a poesia da vanguarda do século XX.
A ascendência do alfabeto, da linguagem escrita, como forma de informação, somente começou a ser minada a partir da Revolução Industrial e, principalmente, a Segunda Revolução Industrial , ou seja, em física, a queda da hegemonia do mundo mecânico para o eletrodinâmico. É aí que voltamos àquele brinquedo, aparentemente um inocente divertissement acionado por Nièpce. Ninguém adivinharia que ali, se apertava o botão de um processo que, já nos dias que correm, fazem do meio primordial de informação não mais uma sequência de relatos, mas uma montagem de registras.
A grande invenção, no entanto, não foi concretizar a fotografia em si e proporcionar o desenvolvimento de suas técnicas. Não foi só isso. Foi criar o material que viria a propiciar todo um elenco de criação e tecnologia: o filme. Dele nascem, além da fotografia o cinema e a televisão com o registro de movimento e som. E as possibilidades que abriu, no sentido da reprodução em propaganda, documentação etc.
Talvez ninguém tenha mais bem concebido, em sua época, os efeitos da descoberta do grande meio de reprodução em massa do que Walter Benjamim, em seu notável ensaio "A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução". Benjamin percebeu que aquilo entendido como "aura" do objeto único, até então a individualidade concreta de cada obra de arte, perdia a sua razão de ser. Os próprios meios de reprodução maciça resultariam em novas concepções de arte e por isso mesmo foi um dos primeiros a dizer que o cinema passara a ser a principal forma de arte. Isso porque o filme, em si, veio a ser o grande material. Usamos aqui o termo material dentro daquela dicotomia" material" e "elemento" - lançada por Susanne K. Langer, a fim de diferenciar o objeto comum, utilitário, do objeto estético, a obra de arte. Segundo Susanne Langer, material é tudo que se afirma na realidade, enquanto elemento constitui o uso do material para projetar virtualidades, tais como idéias, ilusões etc. Ela fornece um exemplo clássico para essa diferença, em seu livro
Uma lntrodução à Lógica Simbólica: a tinta na lata é material; a cor na tela é elemento. E ela própria dava, ao cinema, indiscutível importância, falando inclusive na sua "impressão de onivoridade, apto que está para assimilar os mais diversos materiais e transformá-los em seus elementos próprios", em "Uma Nota sobre o Cinema" ("A Note on Film"), apêndice de seu livro Feeling and Form, publicado em 1953.
Mas o filme é material mais complexo do que, até então, se entendia como tal. Quem observou isso muito bem foi Roman Jakobson. Em seu artigo, "Decadência do Cinema?", entre objeto (res) e signo (signum), ele sustenta o processo de inversão relativo aos objetos que podem funcionar como signos e, em decorrência, estipula que "o objetivo (ótico e acústico) transformado em signo é, na verdade, o material específico do cinema". A seguir, dá um exemplo, que transcrevemos:

A terminologia da roteirização, com seus planos médios, primeiros planos e primeiríssimos planos, é nesse sentido bastante instrutiva. O cinema trabalha com fragmentos de temas e com fragmentos de espaço e de tempo de diferentes grandezas, muda-lhes as proporções e entrelaça-os segundo acontiguidade ou segundo a si a simi laridade e o contraste, isso é, segue o caminho da metonímia ou da metáfora (os dois tipos fundamentais da estrutura cinematográfica).

Hoje em dia, a potencialidade de expressão estética, com o emprego do filme, não é mais colocada em dúvida por ninguém. Sem ele, (o filme), não teria existido Chaplin - um dos maiores artistas do século nem haveriam de ser um Griffith ou um Eisenstein os inventores da montagem, da tesoura como buril de sequências.
E a tevê está aí mesmo, dentro de casa, como a grande forma de cultura: montagem, movimentos de câmera, variedade de planos, ficção e realidade (documentários, telejornais etc.).
E o que restará da "prosa, da ficção"? O velho cavalgar de um texto, ajaezado por figuras gramaticais? Nada de novo. Só ficam os velhos escritores já mitificados, como, por exemplo, na pintura, uma Madona de [Giovanni] Bellini. Há escritores de hoje, numa inútil e torturada dança do ventre verbal, tentando fingir que o relato é registro. Existem ainda os fazedores de versos, naquele mútuo troca-troca de elogios. Mas, o poema está noutra: no registro de estruturas de linguagem, no fazer.
Essa é a verdadeira luta contra a alienação.

O Estado de São Paulo
20/04/1979

 
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