A era da automação revolucionou, no terreno estético, tôda uma concepção da natureza da criação e seus efeitos, que era baseada no artesanato - o chamado corpo-a-corpo com a obra de arte. Talvez ninguém tenha ido melhor a fundo dêsse problema do que Walter Benjamin, no seu ensaio histórico, com cêrca de quarenta anos A Obra de Arte no Tempo de Suas Técnicas de Reprodução. Seu tema principal era a falência da aura do objeto único, denunciado pela reprodutibilidade em massa. Isto viria a decretar o fim do artesanato pelo artesanato e a busca de adaptação do artista a um meio que seria a fonte de uma nova linguagem moderna.
As chamadas artes plásticas, depois de um período longo sob predomínio das pesquisas do abstracionismo - geométrico ou informal - lutaram com a arregimentação de novos materiais (sacos, detritos, peças de máquinas, objetos de uso corrente) e caíram, em seguida, no ludismo mais desenfreado, na busca do caminho da sobrevivência. O romance, depois do Finnegans Wake, de James Joyce (um livro cujo tema principal era a própria linguagem), fêz a dança do impasse, assolado pelo cinema, e do qual, nem psicologismo ou regionalismo conseguiram evitar a indagação radical: valeu a pena? A poesia foi marcada pela desagregação do verso, a quebra dos cânones da estrutura discursiva. No teatro, sob a mira de várias influências, chegou-se, inclusive, ao happening quase puro e simples em algumas peças. A música assistiu à crise do uso de instrumentos da tradição, entrou no concretismo ou na fase eletrônica, com o emprêgo de ruídos e a pesquisa de outras modalidades de camadas sonoras, enquanto a chamada música popular passou a ser um entrosamento de inúmeros elementos antimelódicos. E, por aí afora.
Essa sequência de perplexidades já marcou um período imenso, ampliada ainda pelo desenvolvimento intenso dos meios de comunicação de massa. A ratio ética perdeu-se com a desagregação de uma noção sistemática da estética.
Enfim, num segundo e eletrônico estágio da mimesis aristotélica, volta-se ao passado e retoma-se, com os meios atuais, as realizações dos mestres de outrora. Duchamp não usou a Mona Lisa? pode-se usá-la a sério, o cinema pode especular intensamente com a pintura e o teatro, assim como adapta o romance. João Gilberto grava Caymi, Orlando Silva e Agustin Lara, assim como Caetano foi até Vicente Celestino ou o tango de Discépolo . E os laboratórios eletrônicos trabalham concertos de Mozart. Se o futuro é incerto e morreu, por enquanto, um ideal permanente, se a agulha da bússola vivencial não possui a mesma e tranquila certeza da agulha gótica, talvez reconstruir o passado (e está aí o cinema como grande máquina do tempo documental e espiritual) facilite encontrar o futuro.
Correio da Manhã
11/08/1970