Saber fazer frases não é a única, mas é uma das sinalizações marcantes do escritor, do intelectual. A verve, o "mot d'esprit", o saber estar - traços da passagem de Otto Lara Resende nesta "weste land''. O humor, o santo humor - uma das coisas que fazem o homem dispensar a existência de Deus.
Contista e romancista, ele foi jornalista da primeira linha: cronista, editorialista, articulista, editor, diretor de redação, entre outras atividades, em órgãos da imprensa como a Folha, ''O Globo", "Jornal do Brasil", "Diário de Notícias", "Manchete" etc. Mas nunca nos encontramos nesse trabalho do dia-a-dia das redações.
Os nossos encontros foram de corpo e espírito. No primeiro caso, em reuniões ou naqueles bate-papos de bar, salão ou calçadas. No segundo, através de Nelson Rodrigues (o saudosíssimo Nelson Rodrigues, agora tão bem posto em dia por Ruy Castro), do qual éramos personagens. Atribuía-nos frases nem sempre autênticas; cenas e cenários nem sempre verdadeiros. Mas era uma necessidade de "irmão íntimo" do cotidiano.
Otto foi um pesonagem mais antigo e mais importante. Nelson, numa entrevista à finada "Fatos e Fotos", de 30 de janeiro de 1977, colocou-o entre os "10 brasileiros vivos mais inteligentes", enquanto criticava monstros sagrados, como Drummond ou Chico Buarque. E - mais do que isso tornou-se parte ou alternativa do título de uma das peças do mesmo Nelson: "Otto Lara Resende ou Bonitinha Mas Ordinária", lançada em 28 de novembro de 1962, no Rio de Janeiro, no Teatro da Maison de France.
Indo além. Nesta peça, uma frase atribuída a ele -"O mineiro
só é solidário no câncer''- é exaustivamente repetida. Não se sabe até hoje, ao certo, se teria feito essa frase. Admitia até a veracidade ressaltando, porém, que fora pronunciada em circunstâncias muito específicas. Outra frase projetada por Nelson está no capítulo 42 de "Asfalto Selvagem (Engraçadinha Depois dos Trinta)": "A Europa é uma burrice aparelhada de museus". Nesse mesmo livro, o juiz pede ao próprio Otto um soneto para dar a Silene. Este manda entregar-lhe apenas a "chave de ouro" que, inversamente, seria o princípio do poema: "Entrego o corpo lasso à fria cama”.
Uma das cenas mais ricas de humor foi aquela do dia em que Nelson prestou depoimento gravado para o Museu da Imagem e do Som, em 1º de julho de 1967. Eramos seis os entrevistadores: eu, Hélio Pelegrino, Ricardo Cravo Albim, Walmir Ayala, Fausto Wolf e Otto. Então, Otto e o depoente travaram um bate-papo que foi prato cheio de verve, graças e hilariedade.
"Não sei se divirto o mundo, mas os outros me divertem". No meio do riocorrente, o pisca-pisca da crítica e autocrítica. Essa, uma das atitudes que definem o intelectual. Ele sabia que a dúvida é ontológica. Por isso também, pisando com os cuidados, afirmava que ''para mim é absolutamente fundamental que o espetáculo não termine aqui embaixo, na Terra."
No entanto, o show deve continuar. Outros que ficam ou que chegam, embora raros, prosseguem no revezamento para a entrega do bastão do sempre eterno humor. Amém.
Folha de S.Paulo
03/01/1993