jlg
sobre

  rj  
O brilhante esboço do infinito jogo de dados

Por Nogueira Moutinho

Na escassa obra de Mallarmé, Igitur não tem sido certamente texto privilegiado pela crítica: está longe de desfrutar prestígio semelhante ao do Coup de Dès, sobre o qual as exegeses se multiplicam, assim como não pode disputar a preferência dos conhecedores em relação aos Sonetos da maturidade. Não deixa, por isso, de causar emoção, a ousadia de José Lino Grunewald vertendo a prosa intrincada desse conto 'dirigido à inteligência do leitor' pelo jovem Stéphane Mallarmé. Nele se encontra in nuce a suprema grandeza do poeta: nessa página quase indecifrável emerge cifrada, para quem souber ler, a trajetória futura do sutil 'syntaxier'. Por isso Claudel compara Igitur ao canhoto de um talão no qual se lêem as somas e o destino de todos os cheques emitidos: nessa produção juvenil jazem esboçados todos os temas, todas as idéias, todas as imagens, todos os acessórios que reemergem detalhados e trabalhados nos poemas posteriores. Mallarmé, aliás, confessou um dia que 'para que sua humilde vida tivesse um sentido, sempre se mantivera fiel às suas nativas iluminações'. E como se diz que todo grande criador elabora, afinal, uma só obra ao longo da vida, pode-se seguramente apontar nesses cinco fragmentos de prosa hermética o capítulo inicial do livro único que Mallarmé escreveu e no qual desagua o infinito universo dele.
O próprio título latino é instigante: a igitur, conjunção coordenativa, corresponde um feixe nuançado de significados; pois, assim, logo, portanto... Claudel, em admirável análise do texto, diz que Igitur é o dedo indicador apontando para o alto, gesto com que o mestre sublinhava passagens da conversa nos famosos 'mardis' que reuniam no apartamento parisiense da Rue de Rome, além dele, Claudel, jovens chamados Paul Valéry, André Gide... Ninguém melhor para falar dum poeta do que outro poeta. E é também um poeta, ou pelo menos um raro ledor de poesia, Roland de Réneville que, num livro hoje esquecido, aponta em certo versículo do Gênesis a fonte em que Mallarmé colheu o nome de seu enigmático personagem. Igitur é o ser intelectual por excelência, o homem, interrogando-se sobre seus poderes. Fechado no interior dum castelo, cujos alicerces, materiais e estrutura são os de seu próprio espírito, esse novo Hamlet absorvido num longo, ininterrupto solilóquio, medita sobre a possibilidade de igualar sua consciência à consciência do autor do universo. Se conseguir, poderá, graças ao jogo de seu pensamento, fazer o mundo voltar à noite original Esse seria o fim do drama, infelizmente deixado incompleto pelo mago que pretendeu, pelo pensamento e pela palavra, negar o Acaso e forçar o todo a se evaporar no absoluto.
Conto, poema, drama, Igitur é, no fundo, o lance de dados metafísico inicial da carreira , daquele que foi o príncipe da moderna Helsingor. Publicado postumamemente em 1925, por Edmond Bonttiot, genro de Mallarmé, que descobriu o original no espólio literário do poeta, Igitur deve ter sido composto entre 1867 e 1870, quando Stéphane, por volta dos 25 anos, curtiu o 'exílio provincial, místico e doloroso' de Avinhão. É assim, obra mais ou menos contemporânea de Hèrodiade, situando-se sua composição em época anterior à do Aprés-midi d'un faune, datado de 1876. Instigantemente, sentimo-lo um esboço do poema supremo, definitivo e derradeiro do mestre, o Un coup de dès jamais n'abolira le hasard. Não se pode ler um deles sem conhecer o outro: são páginas simétricas, testemunham haver o poeta perseguido um único fim no curso de toda a vida: vencer o Nada; suprimir o Acaso, essa outra forma do Nada. E nos dois extremos dessa corrente transparece o mesmo orgulho, se desvela veleidade análoga: em Igitur, plena de ardor jovem; no Coup de Dès, vincada pelo desespero mais fundo. Embora Igitur seja um ser abstrato, o ambiente do drama - é Claudel ainda que chama a atenção - aparece decorado com o gosto pesado e asfixiante da era vitoriana: a lâmpada, o espelho, as poltronas, o console, as tapeçarias, o relógio, a biblioteca, o bico de gás, cujo discreto sibilar o mestre tão bem evoca numa das crônicas mundanas de La Derniére Mode.
Baudelaire e Poe ocultam-se, é claro, na origem de Igitur, meditação esotérica em que Mallarmé, imerso em si mesmo, articula a primeira grande tentativa de esconjurar o fantasma da Impotência, que o assombraria a vida toda. Será assim, em larga medida, um fragmento autobiografico: não é por acaso que nas fotografias feitas muito mais tarde no apartamento da Rue de Rome, descobrem-se afinidades inegáveis com a estética 'fin de siécle' do interior em que Igitur evolui. O esquema da narrativa é límpido: vítima da temporalidade, prisioneiro da contigência, Igitur, antes de voltar ao Nada, decide oferecer aos ancestrais, à longa linhagem daqueles que o engendraram, a prova de que tiveram razão ao desafiar o destino. Não há dúvida de que foi loucura esse ato, mas essa loucura, o poeta, 'suprema encarnação de sua raça', a assume e a leva às consequências últimas: o lance de dados em que o Acaso se absorve é transferido subitamente ao infinito, que deve existir em algum lugar. Hamlet no topo de sua torre - diz Claudel - percebe-se rodeado de objetos cuja função é significar que o poeta está encerrado numa prisão de signos. Vasado numa prosa densa, cerrada, percorrida já pela musicalidade inadmissível, cuja poderosa orquestração vai tingir plenitude na prosa futura do mestre, Igitur representa traiçoeiro desafio ao tradutor. É bem o fosso quase intransponível entre os sutilíssimos recursos do francês, estrutura de dutilidade incomparável na pena de Mallarmé, e as limitações de um idioma 'rude e doloroso' como o nosso, que se pressente nesta versão de José Lino de Grünewald. Vê-se que o poeta carioca precisou queimar várias etapas para recriar a escrita de um criador, cuja expressão, elaborada ao fio de séculos de polimento, chegou-lhe às mãos decantada bastante para que nela fosse talhada a prosa requintada de Igitur. O tradutor soube temperar seu instrumento até o limite do possível em várias passagens. Em outras, o peso, a opacidade sintática e semântica do idioma perdem para a translucidez, a 'souplesse', a cristalinidade da teia verbal mallarmeana. Para sentir os dois pólos, o positivo e o negativo, da tentativa de José Lino, compare-se com o original um dos belos parágrafos da versão: 'Desvanecida a sombra na obscuridade, a noite permaneceu com uma dúbia percepção de pêndulo que se vai aniquilar e expirar em si mesmo; mas, este que brilha e vai, expirando em si mesmo, aniquilar-se, ela percebe que ainda o traz; então, era dela, sem dúvida, a pancada ouvida, cujo ruído total e despojado jamais tombou em seu passado.'
Pressente-se que alguma coisa seperdeu na passagem. Nossa vingaça, porém, e vingança florentina, é que Guimarães Rosa também não se sentiria à vontade vendo Riobaldo e Diadorim dialogar na língua de Mallarmé.

Folha de S.Paulo
09/12/1984

 
Poesia
Estado de Minas 10/09/1961

Eruditos & eruditos
Carlos Heitor Cony Correio da Manhã 28/09/1963

Prelúdio do Zé Lino
Carlos Heitor Cony Folha de S.Paulo 26/05/1965

A contracultura eletrônica
Jacob Klintowitz Tribuna da Imprensa 18/05/1971

Transas, traições, traduções
Carlos Ávila Estado de Minas 02/12/1982

Escreve poemas, traduz Pound, é crítico de arte e é de Copa
Vera Sastre O Globo 03/10/1983

O brilhante esboço do infinito jogo de dados
Nogueira Moutinho Folha de S.Paulo 09/12/1984

Diário das artes e da impensa
Paulo Francis Folha de S.Paulo 12/01/1985

Igitur, um Mallarmé para iniciados
Salete de Almeida Cara Jornal da Tarde 08/03/1985

Grünewald traduz Ezra Pound
Jornal do Brasil 12/03/1985

O grande desafio de traduzir Pound
Sérgio Augusto Folha de S.Paulo 16/03/1985

O presente absoluto das coisas
Décio Pignatari Folha de S.Paulo 06/09/1985

Ezra Pound - entrevista
Gilson Rebello Jornal da Tarde 26/10/1985

Pound, traduzido. Uma façanha ou loucura?
Isa Cambará O Estado de São Paulo 05/12/1986

J. Lino inaugura forma de pagamento
Ângela Pimenta Folha de S.Paulo 07/12/1986

49 registros
 
|< <<   1  2  3   >> >|