Já saiu o número 7 da revista baiana "Código", uma presença cultural da maior importância no panorama da poesia brasileira atual. Editada por Erthos Albino de Souza, "Código" traz desta vez traduções de José Lino Grünewald, poeta, ensaista e crítico de cinema carioca. Com apenas um livro de poemas editado, o pequeno volume "Um e Dois" de 1958, reunindo suas primeiras produções ainda discursivas e sua poesia concreta, José Lino colaborou fartamente na imprensa (principalmente no extinto "Correio da Manhã"), com muitos artigos, criticas e traduções dispersos por ai. Se alguma editora reunisse seus artigos e traduções de poesia, todos de alto nivel, ganhariamos um volume do tipo e da importância do "Poesia-Experiência" de Mário Faustino (Perspectiva, SP, 1977), companheiro de geração de José Lino e também jornalista. Se alguma editora reunisse suas criticas de cinema, imprescindiveis para a elaboraçlo de um pensamento cinematográfico no Pais, ganhariamos outro volume de importância também, do nível dos realizados com o material deixado por Paulo Emilio Sales Gomes ("Crítica de Cinema no Suplemento Literário", Paz e Terra, 1982). Bem, enquanto isso não acontece por omissão de editores sem visão ou do próprio José Lino que não se interessa por reunir em livro sua produção, podemos curtir um pouco do seu trabalho através das traduções agora reunidas e editadas em "Código/7": "Transas, Traições, Traduções".
A fina flor, os gigantes, os maiores inventores em poesia estão presentes nas traduções de José Lino, na maioria já anteriormente publicadas pelo "Correio da Manhã", quando o poeta fazia ali um excelente trabalho de divulgação cultural. Segundo o tradutor, "o critério de escolha é puramente subjetivo, ou seja, numa trilha de leituras, a tentativa de inserir em nosso idioma alguns dos poemas que permaneceram registrados pela sensibilidade, agitados pela instigação intelectual". É assim que deparamos com peças de Shakespeare, de Ezra Pound (inclusive as máscaras das "Personae", ressuscitando grandes poetas do passado), de William Carlos Williams, T S. Eliot, E. E. Cummings, Dylan Thomas, Ronsard, Baudelaire, Mallarmé, Apolinaire e, finalmente, Guido Cavalcanti. Não é preciso dizer mais nada sobre estes nomes, o elenco de autores se impõe por si mesmo, numa perspectiva tanto sincrônica quanto diacrônica do desenvolvimento da linguagem poética.
O critério de tradução de José Lino é o mesmo de Ezra Pound, ou seja, a recriação, a reinvenção via-linguagem do original, compondo verdadeiros poemas novos, quase paráfrases em português: "tradução é forma - o transplante de estruturas, de elementos em relação, de uma língua para outra" Transas do significante, traições do significado: traduções/ invenções. Por exemplo, o genial soneto de Mallarmé, "Brinde":
Nada, esta espuma, virgem verso
Apenas denotando a taça;
Como longe afogam-se em massa
Sereias em tropa ao inverso.
Navegamos, ó meus diversos
Amigos, eu já sobre popa,
Vós a proa que rompe a pompa
As vagas de trovões adversos.
Empenho-me em pura voragem
Sem mesmo temer a arfagem
A, de pé, este brinde erguer:
Solitude, recife, estrela
A não importa o que valer
O alvo desvelo em nossa vela.
O “vierge vers” de Mallarmé tem aí uma das suas transposições mais precisas e belas; a outra foi realizada por Augusto Campos, que também traduziu “Salut”, peça que contém na primeira palavra do verso inicial a “chave”, o “mor-clé” de toda a poesia mallarmaica: “rien” (nada).
Muitas grandezas e belezas o leitor vai encontrar nas “Transas, Traições, Traduções” de José Lino Grünewald. No final da revista uma surpresa: nada mais nada menos do que um poema inédito de José Lino, escrito em junho de 1959. Trata-se de um curioso texto, onde o poeta/tradutor põe a mascara de João Cabral de Melo Neto, criando um poema a sua moda, numa homenagem ao grande construtivista brasileiro. Uma modalidade quase inédita de “tradução” entre nós (Manuel Bandeira também trabalhou nessa linha, no seu “Mafuá do Malungo”): depois de traduzir do ingles, do italiano e do francês, José Lino “traduz” do português para o português. Versatilidades de inventor, transparências verbais.
Estado de Minas
02/12/1982