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O presente absoluto das coisas

Por Décio Pignatari

Lendo e relendo Igitur, de Mallarmé, na tradução notável de José Lino Grunewald (Nova Fronteira, 1984), acorreram e ocorreram-me idéias como gafanhotos - isto se você acreditar que possam haver idéias em quantidade acrídia, ou ao menos aceitar que, sob a forma de pretextos, possam enumear as cabeças de Oswald "João Miramar" de Andrade e sua namorada, que volta e meia escapavam para o meio do mato...
Mallarmé tinha 25 anos de idade quando entrou em crise existencial profunda e deu inicio à composição desse conto-teatro puramente mental, que abandonou três anos depois, deixando-o sob a forma de esboço. Numa prosa densa e cerrada, as frases se sucedem dentro do mais extremado rigor lógico-gramatical - só que nunca se pode saber do que é que ele está falando. Ou o leitor desiste logo na introdução, ou se aplica teimosamente ao texto e vai até ao fim. Perceberá então algo assim como o rumor ininteligível do fluxo de seus próprios pensamentos antes de serem enunciados. A tradução do José Lino, embora absolutamente literal, faz passar essa música mental seu ritmo e seu balanço - o que não deixa de ser um verdadeiro prodígio. Claro, há coisas intraduzíveis como a anagrama "fiole/folie" (frasco/loucura). Mas o Zé Lino, sutilmente, com o acréscimo de apenas uma palavra não constante do texto - a palavra "visão” - consegue uma correta e elegante solução: "La fiole vide, folie" / "O frasco vazio, visão, loucura". E agora percebo que uma das palavras preferidas do poeta, "Néant" (= Nada, no sentido filosófico), contém dentro de si não só a palavra "nascido" (= "né"), mas implica a de um nascido que não nasceu, mas que está sempre nascendo, já que a sua terminação imita o gerúndio francês; e percebo que "rien" (= nada, no sentido adverbial corrente) é anagrama de "nier" (= negar); e percebo que...
Bem, nesse processo verbal de pura e absoluta nadificação das coisas, Mallarmé parece abolir passado e futuro e atingir o grau zero do tempo: o "presente absoluto das coisas" / "le présent absolu des choses". Belíssima expressão. Mágica. Fascinante. O eterno e o infinito encapsulados no instante.
Que passa. E não passa. Não sem razão, já houve quem aproximasse esse esforço verbo-mental de Mallarmé aos processos antiverbomentais da mística oriental.
A presentificação do tempo parece ser uma das características do nosso século. E o que se observa na monótona prosa inovadora de Gertrude Stein, que vai introduzindo imperceptíveis alterações em seu interminável fluxo de redundâncias - tal como ocorre na música oriental e na música chamada "minimalista", de nossos dias. No cubismo, um mesmo objeto é visto de vários ângulos diferentes, ao mesmo tempo. E o pintor, crítico e escritor inglês Wyndbam Lewis, na década de 20, investia contra a publicidade, dizendo que, para esta, só existia o tempo presente. Talvez irritado com a quotidianização do consumismo democrático, Lewis, que foi amigo e inimigo de Pound, acabou aderindo ao fascismo, versão britânica.
Pelas conferências e declarações de arquitetos e urbanistas que ora participam do simpósio sobre "a cidade do futuro", dá para perceber que, enquanto eles estão com os olhos voltados para as megalópolis do porvir, 80% dos habitantes e usuários dessas urbes só tomam conhecimento da cidade do presente, já que não possuem perspectiva, prospectiva ou espessura históricas. E esse conflito é insolúvel: as cidades parecem inchar-se e esvaziar-se graças a uma pura força quantitativa que escapa ao controle de qualidade dos planejadores.
O que chamamos de passado são apenas dejetos e pegadas do presente; o que chamamos de futuro não é senão o presente projetado. Os mortos nunca têm razão e os nascituros ainda não têm opinião. Os vivos não são apenas os senhores da Terra: são também os senhores do tempo. Para Walter Benjamin, o presente é um anjo aterrorizado que avança de costas para o futuro, deixando escombros no passado. Depois do passadismo e do futurismo, temos o presentismo.

Folha de S.Paulo
06/09/1985

 
Poesia
Estado de Minas 10/09/1961

Eruditos & eruditos
Carlos Heitor Cony Correio da Manhã 28/09/1963

Prelúdio do Zé Lino
Carlos Heitor Cony Folha de S.Paulo 26/05/1965

A contracultura eletrônica
Jacob Klintowitz Tribuna da Imprensa 18/05/1971

Transas, traições, traduções
Carlos Ávila Estado de Minas 02/12/1982

Escreve poemas, traduz Pound, é crítico de arte e é de Copa
Vera Sastre O Globo 03/10/1983

O brilhante esboço do infinito jogo de dados
Nogueira Moutinho Folha de S.Paulo 09/12/1984

Diário das artes e da impensa
Paulo Francis Folha de S.Paulo 12/01/1985

Igitur, um Mallarmé para iniciados
Salete de Almeida Cara Jornal da Tarde 08/03/1985

Grünewald traduz Ezra Pound
Jornal do Brasil 12/03/1985

O grande desafio de traduzir Pound
Sérgio Augusto Folha de S.Paulo 16/03/1985

O presente absoluto das coisas
Décio Pignatari Folha de S.Paulo 06/09/1985

Ezra Pound - entrevista
Gilson Rebello Jornal da Tarde 26/10/1985

Pound, traduzido. Uma façanha ou loucura?
Isa Cambará O Estado de São Paulo 05/12/1986

J. Lino inaugura forma de pagamento
Ângela Pimenta Folha de S.Paulo 07/12/1986

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