Crítico era antenado com todas as artes
Ninguém conseguiu ver melhor o cinema do que Grunewald
José Lino Grünewald foi, em síntese, um produtor múltiplo de cultura, um inquieto buscando sempre algo, um trapezista em vôo livre e criativo do pensamento, um tradutor extraordinário dos textos, dos contextos, das várias atmosferas humanas. As quais - sabemos todos - variam de situação para situação, de momento para momento, de circunstância para circunstância. Por isso, as palavras e frases têm coloridos diversos: não são previsíveis. E na arte não se repetem. Aliás, nada se repete na arte, eternamente ruptura. Daí a dificuldade de análise, maior ainda de crítica. Inclusive, no fundo, a crítica é um esforço do autor para identificar uma arte dentro de outra.
Por entender essa multiplicidade como ninguém, este jornalista, poeta, ensaísta, escritor e tradutor JLG partia de seu universo particular com a sua pouco aparente ansiedade à busca de tudo. Muitos na vida devem muito a ele. Eu sou um deles. José Lino caminhava, ao contrário de Orestes Barbosa, pisando astros muito atentamente. A cada passo acendia uma luz. Muitas luzes foram acesas, brilham até hoje e estou certo - vão brilhar sempre. Sua importância construtiva no infinito da percepção e da emoção será cada vez maior.
Está aí no Grau zero de Escreviver, bela seleção e bela apresentação emocionada de José Guilherme Corrêa tocadas certamente por algumas lágrimas que caíram sobre as teclas, embaçando-as, como ocorreu com o personagem de Joseph Cotten no Cidadão Kane. Os trabalhos de Grünewald abrangem o tema cinema, no fundo sua grande paixão, a poesia, o futebol, a música popular brasileira, o tango, sobre o qual escreveu um livro, e Nelson Rodrigues, de cuja obra, para mim, ele foi o melhor intérprete, sobretudo ao identificar o moralismo ululante do gigantesco autor. A política não era o seu toque mais forte, mas a ela chegou muito bem, através de brilhantes editoriais e tópicos no antigo Correio da Manhã, grande jornal que desapareceu na névoa do tempo.
Lá dividia tópicos e editoriais com dois dos cinco maiores articulistas de opinião da imprensa brasileira de todos os tempos, Otto Maria Carpeaux e Franklin de Oliveira. Os outros três foram Álvaro Lins (também do Correio da Manhã), João Neves da Fon- toura (O Globo) e José Equardo Macedo Soares (Diário Carioca). Por que a política não foi seu ponto forte? Simplesmente porque ele acreditava, de forma juvenil, no ser humano. Não queria deixar de fazê-lo. A política assim o iludiu como se fosse a amante que escapa do sonho.
JLG foi brilhante em toda a sua produção, porque ele tinha em seus olhos a lente da inteligência, não apenas da comum e setorial. Mas aquela que proporciona a visão coletiva e reflexiva de grandes pensadores como Marx, Freud, Hegel, Heidegger, Ezra Pound, Einstein, Cassirer, todos unidos na galáxia de Gutemberg, explosão criativa de McLuhan, acentuando o que a imprensa significou para o mundo.
Escreviver coloca José Lino a um passo da eternidade. Ninguém viu o cinema melhor do que ele. Não a técnica de produção, não a historicidade, não seus bastidores, mas a sua universidade, sua vinculação com tudo, espelho mágico de todo nós. José Lino, um decifrador de enigmas, o crítico que escapava das armadilhas da arte dos artistas. A obra de arte se sempre um ato solitário e solidário do autor. Algo que não repete e a única forma que o se humano encontrou para responder à morte. A arte é eternal, aí estão as provas, de Shakespeare a Chaplin e Orson Welles No meio do redemoinho que é a vida, Escreviver, pelo pulsar da inquietação, será também um verbo para sempre. Como JLG que flutuará na cultura ao longo do tempo.
Jornal do Brasil
07/12/2002