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Um e dois

Por Décio Pignatari

Era um tempo quando as coisas e as gentes se formavam, aparentemente, crentemente, junto com o Brasil: sociedade, sentimentos, cultura, corações e cabeças.
Após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil retomava a discussão e o tema da arte moderna, depois que esta sofrera a primeira grande cooptação varguista-comunista-nacionalista, que envolveu figuras como Villa-Lobos, Portinari e Mário de Andrade.
Caíra, enfim, a ditadura Vargas (ela continua até hoje, como se sabe), as gentes culturais das cidades grandes voltaram-se para os lugares que haviam derrotado o nazi-fascismo e onde o "moderno" refloria com toda a força da liberdade: Inglaterra, França, Estados Unidos. A direita e à esquerda, os grandes truncamentos culturais: Stalin, Franco, Salazar, Mao. Guerra fria.
Por aqui, guerra quente. Uma festa brasileira da cultura internacional, contraparte à cooptação varguista: o Teatro Brasileiro de Comédia, o Teatro do Estudante, o Museu de Arte de São Paulo, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (Reidy, o nosso grande arquiteto injustiçado, mais importante para o Rio do que o stalinista Niemeyer), a Bienal de São Paulo, o I Festival Internacional de Cinema de São Paulo (a primeira e única homenagem mundial prestada ao gênio de Erich Von Stroheim), Juscelino Kubitschek (os esquerdofrênicos preferem o medíocre João Goulart), Brasília, o Sputnik, a bossa nova, Pelé e a primeira copa Jules Rimet, a revolução cubana, o pré-cinema novo de Nelson Pereira dos Santos (tentando juntar Hollywood com Cinecittà) e Ruy Guerra (Os Cafajestes), a grande revolução jornalística do jornal do Brasil, Mário Faustino, a arte e a poesia concretas, José Lino Grünewald. São Paulo, provinciana, montando o primeiro sistema válido do capitalismo industrial, ainda não sabia falar para o Brasil, o Rio de Janeiro, seguindo uma secular tradição "capitalista" (de cidade capital), que recuava até aos tempos coloniais, ainda falava, com propriedade e força, para o país todo (mas a partir dos anos
50 começaria a deixar de falar com exclusividade).
Carioca peau de citron, como não os há inumeráveis, embora de trigeracional ascendência alemã, desses que desprezam a praia pela praia (conheci-o nas Laranjeiras), veio emergindo à superficie da nova sensibilidade da cultura revolucionária brasileira, de modo generoso, modesto e irônico. Desses leitores-sensores sem os quais os ianques paulistas (sem os quais, por sua parte, uma cultura moderna, de consciência industrial, é impossível) entregar-se-iam a uma ação industrial predatória, dilapidando a herança cultural rural e as suas finas manifestações e expressões
urbanas.
José Lino começa hesitando entre a metáfora e a melopéia, nos primeiros poemas. Optará pela melopéia, sob o claro e vivaz influxo de Mário Faustino e Pound. Seus poemas de 1956-57, nessa linha, levam a macromusicalidade ao extremo destrutivo e mutante do sonorismo abstrato, onde o enjambement aponta para a prosa de Joyce e Rosa: vejam-se, como exemplos, "Não Fosse a Vista Errante", "Quarto Escuro" e "Um Adeus ao Horizonte" Logo depois, em "Ravina" e "A Ira por um Fio", chega à beira do abismo. E salta. Para além do verso. Tento seguir, aqui, a ordem diacrônica de sua evolução poética. Mas, neste livro, José Lino surpreende com lances sincrônicos, de poemas participantes ("As Alienações") a um surpreendente soneto, "Dificil Responder a Tal Pergunta", cuja chave de ouro é uma das mais belas pedras-de-toque da poesia brasileira. "A resposta é você. o que é o amor?" Então, a língua vira linguagem. A palavra, o verbal, começa a transmutar-se, a ser figura, a ser o que, em verdade, já era (tel qu'elle même…): ícone. Além do verbo, o que curtia e curte o José Lino, que um dia me quis fazer crer que o seu maior pecado, ou melhor, que o pecado capital que mais gostava de alimentar, era o da gula?... Grande conhecedor da MPB -Velha Guarda, de Gardel, de ópera (Lauri-Volpi), tinha a paixão do cinema. Cinema! Esteve entre os primeiros, seguindo Moniz Vianna e Rubem Biáfora, a sacar a beleza dos musicais da Metro (chegou a colocar Maytime, com Jeanette MacDonald e Nelson Eddy, entre os vinte maiores filmes de todos os tempos), a importância cômica de Jerry Lewis (de Errand Boy em diante, até, digamos, The Nutty Professor), a esnobar Eisenstein, preferindo Chaplin, a escrever com perspicácia criativa sobre a nouvelle vague (seu breve estudo sobre Vivre sa vie, de 1964, é dos mais agudos sobre Godard, até hoje), a montar uma antologia sobre a Idéia do Cinema, obra sempre procurada e nunca encontrada, porque não reeditada. O jornalismo foi e é a sua grande paixão profissional, a sua grande paixão verbal, depois do verbal/não-verbal (linguagem) da poesia: a febre cotidiana das redações, o mundo e a mesa ao lado com as pessoas e as vidas ao lado desovando febricitâncias pelas máquinas-palavras, hausto palpitante do folclore do "escreviver"- jornalismo, depurador da escritura excessivamente hipotético-enrolada. E a poesia concreta. Alguns clássicos republicados pelo mundo afora, como o "Vai e Vem", musicado por Gilberto Mendes. Fielmente pertinaz na escassa produção, postura importante do movimento da poesia concreta, que dava preferência ao poema matricial (indústria de base), gerador de poesia ao longo da cultura. Ideologicamente (esteticamente) falando, um poema concreto não é um poema: é a poesia. Tal tomada de "poesição" provocaria o ódio e a ira de todos os poetas, professores e críticos que buscavam e buscam uma posição pessoal na vida literária. Nisto, o Brasil não mudou em nada. Mas a poesia concreta mudou tudo.
Então, para contrariar todo mundo, para fornecer vasto pasto à ignorância dos nacionalóides monolingües, José Lino traduziu 800 páginas de Pound. Os Cantos. Houve até o caso de um professor que escreveu uma página de jornal sobre Ezra Pound, mencionando apenas de passagem a recém-lançada tradução (para não ter de fazer-lhe a resenha, lógico) É bom que a crítica critique e aponte falhas, sempre. Mas é bom também que se diga que, depois da obra sem par de Odorico Mendes, que traduziu todo Homero e todo Virgílio, no século passado, a obra de José Lino é o maior esforço tradicional-traducional que se realizou no Brasil, neste século, juntamente com o Ulysses, de Joyce, cuja tradução Antônio Houaiss levou a cabo, valentemente. A irônica luta artístico-política do José Lino: ao mesmo tempo que recepcionava Fritz Lang e se extasiava com os paradoxos faisandés de Nelson Rodrigues, acolhia em sua casa os inocentes "conspiradores" pré-64: Paulo Francis, Artur da Távola, Newton Rodrigues, e mais uma dezena de nós outros Ao fim, acabaria por tirar um sarro da "revolução" e dos "exilados"
Para minha alegria, neste percurso de amizade bem brasileiro, neste travelling da obra de José Lino, vim do não-verbal (projetei e desenhei a capa de sua primeira coletânea de poemas, Um e dois, 1958) ao papo verbal deste prefácio. Como, certa vez, fomos atores pífios num filme de Júlio Bressane (ele, de Carlos Gardel, eu, de Dante Alighieri), digo, de ator a ator, de autor a autor, de tradutor a tradutor, pensando no paraíso não pensante nacional e naquele Rabindranath Tagore do Canto LXXVII, rearranjando as coisas, para melhor efeito dramático:
Eles pensam… mas não há clima
Eles pensam... mas está quente
Eles pensam… mas sempre há algum inseto.

Prefácio do livro Escreviver - primeira edição
01/01/1987

 
Poesia
Estado de Minas 10/09/1961

Eruditos & eruditos
Carlos Heitor Cony Correio da Manhã 28/09/1963

Prelúdio do Zé Lino
Carlos Heitor Cony Folha de S.Paulo 26/05/1965

A contracultura eletrônica
Jacob Klintowitz Tribuna da Imprensa 18/05/1971

Transas, traições, traduções
Carlos Ávila Estado de Minas 02/12/1982

Escreve poemas, traduz Pound, é crítico de arte e é de Copa
Vera Sastre O Globo 03/10/1983

O brilhante esboço do infinito jogo de dados
Nogueira Moutinho Folha de S.Paulo 09/12/1984

Diário das artes e da impensa
Paulo Francis Folha de S.Paulo 12/01/1985

Igitur, um Mallarmé para iniciados
Salete de Almeida Cara Jornal da Tarde 08/03/1985

Grünewald traduz Ezra Pound
Jornal do Brasil 12/03/1985

O grande desafio de traduzir Pound
Sérgio Augusto Folha de S.Paulo 16/03/1985

O presente absoluto das coisas
Décio Pignatari Folha de S.Paulo 06/09/1985

Ezra Pound - entrevista
Gilson Rebello Jornal da Tarde 26/10/1985

Pound, traduzido. Uma façanha ou loucura?
Isa Cambará O Estado de São Paulo 05/12/1986

J. Lino inaugura forma de pagamento
Ângela Pimenta Folha de S.Paulo 07/12/1986

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